Glória Perez fala sobre o difícil início de “Salve Jorge” e da polêmica de Aisha
Ao longo dos últimos sete meses, “Salve Jorge” ousou ao trazer ao horário nobre da Globo um tema praticamente desconhecido pela maioria dos telespectadores: o tráfico humano. A autora da trama, Glória Perez, que sempre abordou assuntos polêmicos em suas obras, fez um balanço da história nesses mais de 170 capítulos exibidos.
Em entrevista exclusiva ao RD1, a dramaturga falou sobre os desafios que o folhetim enfrentou desde a estreia, como o horário de verão e o fim de ano, além da busca pra dar o tom exato à história, que abordaria um assunto tão delicado.
Glória ainda falou sobre o casal principal da trama e disse não acreditar que Theo (Rodrigo Lombardi) traiu Érica (Flávia Alessandra), já que só casou com ela pensando que Morena (Nanda Costa) estava morta. Érica, segundo a autora, representa a mulher que ama demais e acredita que todo esse sentimento será suficiente para o casal.
A polêmica reação de Aisha (Dani Morena) ao encontrar a mãe biológica também recebeu uma explicação da Glória. Wanda (Totia Meireles), apesar de ter sido presa, era do mesmo ambiente de Aisha, inclusive frequentava sua casa, diferente de Delzuíte (Susana Badin). “Não é uma questão de preconceito, é de estranhamento”, disse a autora.
Qual foi o maior desafio de “Salve Jorge”? Qual o balanço que você faz deste longo trabalho que é escrever uma novela?
O desafio maior foi encontrar o tom para falar de um tema tão duro e tão pesado numa novela. E encarar as nossas condições de estreia: os lançamentos foram simultâneos, logo não tivemos escada; primeiro dia do horário de verão, e a um mês do mês do natal, quando a audiência cai naturalmente. Ainda por cima, no nosso primeiro mês (novembro) enfrentamos todos os feriados: um de três dias e outro que chegou a seis, por conta dos enforcamentos. Vencer todas essas dificuldades foi um feito e tanto: é na tempestade que se conhece o piloto! De modo que me sinto muito compensada, especialmente pela força que esse trabalho teve de interferir no real, salvando vidas, promovendo reencontros e libertando gente escravizada.
“Salve Jorge” ousou ao trazer uma protagonista favelada, que chegou a se prostituir, algo que poderia não ser entendido pelo público, além, claro, do fato de Nanda Costa nunca ter protagonizado uma novela. A novidade, no entanto, agradou e Morena caiu no gosto popular. Em algum momento você pensou que a personagem poderia não agradar? Foi uma ousadia?
Em relação a Nanda eu nunca tive a menor dúvida. E também não consegui entender a estupidez que foram as manifestações orquestradas quando de sua escolha: primeiro porque as novelas estão sempre lançando protagonistas, até aí nenhuma novidade, e também porque não se tratava de uma novata, mas de uma atriz consagrada e premiada até internacionalmente como protagonista no cinema brasileiro.
A ousadia foi levar o tema da escravidão humana para uma novela, através de uma protagonista favelada e prostituída. Apesar da grande lucratividade -32 bilhões de dólares por ano-, é um crime que se mantém invisível. Quando comecei a trabalhar no tema me impressionou ver que pessoas informadas se recusavam a crer que no seculo XXI ainda existisse escravidão: mas ela está aí, acontecendo bem do nosso lado. A ONU estima que, nesse momento, 2 milhões de pessoas, em todo o mundo, estejam sendo escravizadas, e o Brasil está presente de maneira bem significativa. Lamento que gente que poderia ter somado, sequer prestou atenção na importância dessa denúncia, que foi capaz de gerar providências, devolver a liberdade para muitas pessoas e impedir que outras tivessem o mesmo destino: preferiram reduzir tudo isso a erros de continuidade, que aliás nem são da responsabilidade do escritor!
O tema tráfico humano nunca tinha sido retratado na dramaturgia. Você acredita que muitos telespectadores ainda desacreditam em tanta maldade e tratam o assunto como se fosse algo fictício?
A novela foi um grande alerta, mas é verdade que ainda vejo muita gente tratando como ficção: é por isso exatamente que o crime se mantém invisível ainda que os governos do mundo inteiro estejam dando prioridade ao assunto, que Obama tenha ido à ONU declarar guerra à escravidão do século XXI e o próprio Papa, em seu discurso de posse, tenha sublinhado a importância de dar um basta nisso! Mas com todos os outros temas que eu tratei foi a mesma coisa -internet, clonagem, barriga de aluguel, transplante de órgãos etc. De cara foram tachados de fantasiosos.
O público mudou ou se tornou mais “especialista” em novela?
Não, o público sempre foi especialista em novelas, como é especialista em futebol.
O Theo (Rodrigo Lombardi) sofreu rejeição por parte do público? O protagonista não errou em trair a Érica (Flávia Alessandra) várias vezes?
Claro que não: a grande história de amor do Theo é a Morena, é a essa paixão que ele teria de ser fiel, e ele foi. Casou com a Érica porque pensou que Morena tinha morrido. Quanto a Érica, é aquela personagem que representa a mulher que ama demais, e está sempre achando que seu amor será suficiente para dois! tipo mais do que comum na vida cotidiana.
Muitos internautas questionaram a reação de decepção da Aisha (Dani Moreno) ao descobrir que a mãe biológica, a Delzuite (Susana Badin), morava em uma favela, mas a jovem não ficou chocada quando viu Wanda (Totia Meireles) em uma cadeia, usando nome falso e respondendo por um crime, e ainda deu dinheiro para a suposta mãe. Ela foi injusta?
É uma maneira muito rasa de perceber as coisas. Quem foi traficado e procura sua origem sempre idealiza a mãe que o gerou, como se ao encontrá-la fosse resolver também seus problemas de identidade. Essas pessoas sofrem a angustia de não se sentirem pertencentes nem ao país onde foram criadas, nem ao país de onde sabem que vieram. São sentimentos muito complexos. Com a Wanda, Aisha já tinha pontos de partida, portas de entrada para essa identificação, já conhecia a Wanda como amiga da mãe, era alguém que transita pela Turquia também, e mais: transitava no mesmo universo social e cultural.
Já Delzuite era completamente estranha, o universo ao Alemão, sua cultura própria, tudo era completamente estranho a ela. Não é uma questão de preconceito, é de estranhamento. Pense em você descobrindo que sua família está numa aldeia da Capadócia você não ia conseguir se sentir integrado àquele universo. Pelo menos de cara. E há uma decepção nisso, claro, porque ela fantasiou essa identificação imediata.
Vou aproveitar sua pergunta para indicar uma página onde você vai encontrar muitos traficados falando desses sentimentos, e quem sabe algum leitor possa dar a eles alguma informação que os ajude a encontrar suas famílias!
http://www.desaparecidosdobrasil.org/procuro-minha-mae
A Rosângela (Paloma Bernardi) é uma vítima e ao mesmo comparsa da quadrilha. Você acha que o público quer vê-la definitivamente livre dos mafiosos ou atrás das grades?
Quanto a Rosângela as pessoas se dividem um pouco, mas a maioria quer que ela acabe tomando o lugar da Lívia como chefe da quadrilha!
Cláudia Raia gravou o final de Lívia na Turquia?
Ela gravou umas cenas na Turquia, mas não o final de Lívia.
Você pensa mesmo em nunca mais escrever novelas com culturas estrangeiras?
“Salve Jorge” não é uma novela sobre cultura estrangeira. Enxergar assim é reduzir o quadro à moldura! O país estrangeiro está presente porque o tema da novela é Tráfico Internacional de Pessoas. Em “Caminho das Índias e “O Clone”, sim, eu falei de outras culturas.
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